Educação Inclusiva: “barreira atitudinal é o maior desafio dentro das universidades”, diz especialista
Entrevista com Lucélia Cardoso Cavalcante Rabelo
Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), professora Lucélia Rabelo é pedagoga, natural do Pará. Possui formação na área de Alfabetização (aperfeiçoamento) e atuou em vários projetos da Universidade Federal do Pará (UFPA) nas áreas de ensino, pesquisa e extensão, além de coordenar programas de extensão nas áreas de formação de professores em Arte: Educação, Economia Solidária e na área de Educação Especial. Atualmente coordena projetos de ensino, pesquisa e programas de extensão na área de Educação Especial.
Atua como professora adjunta da área de Educação Especial da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), onde é pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Formação de Recursos Humanos em Educação Especial (GP-FOREESP) da (UFSCar). Atualmente lidera o grupo de pesquisa “Educação Especial: Contextos de Formação, Políticas e Práticas de Educação Inclusiva e Acessibilidade” e também o “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Assistivas e Acessibilidade”, vinculado ao CNPQ pela UNIFESSPA. Atua como coordenadora do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão Acadêmica - NAIA da UNIFESSPA.
Foi uma das convidadas para proferir palestra no I Circuito PROEG de Atualização Pedagógica realizado pela Pró-reitoria de Ensino e Graduação da Universidade Federal de Roraima (UFRR), em maio de 2017, no Centro Amazônico de Fronteira (CAF), que teve como tema principal Incluir e Educar. Professora Lucélia concedeu a entrevista a seguir à equipe da Coordenadoria de Comunicação (Coordcom/UFRR), falando dos aspectos políticos, históricos e jurídicos da Educação Inclusiva, os avanços e limites dos processos de acessibilidade no âmbito do ensino-aprendizagem.
Éder Rodrigues | Fotos: RCCaleffi | Coordcom/UFRR
Coordcom – Do ponto de vista histórico, como avaliar as políticas de ações afirmativas no Brasil, destinadas à garantia dos direitos das pessoas com deficiência?
Lucélia Rabelo – Considerando o histórico do atendimento à pessoa com deficiência, de um modo geral, demorou muito tempo até se conquistar a efetivação de direitos, a materialidade de algumas previsões de direitos e algumas políticas públicas, dentre elas, as mais recentes, que são as políticas de ações afirmativas. Elas tentam superar condições e processos históricos de exclusão, de marginalização de grupos na sociedade, dentre estes, as pessoas com deficiências.
A população com deficiência tem uma certa condição dupla de exclusão, de super-vulnerabilidade pelo fato de termos o indígena com deficiência, o negro com deficiência, o pobre com deficiência, o homossexual com deficiência. São duplamente discriminados.
Culturalmente a sociedade ainda tem um ranço com isso. Mesmo com todas as transformações do modo de olhar para a pessoa com deficiência, a sociedade ainda tem um ranço muito arraigada no modo de olhar a condição da pessoa com deficiência.
Desde a terminologia que se usa, não é aleatória você chamar ‘pessoa com deficiência’, ou ‘deficiente’ ou ‘anormal’. Tudo isso traz um reflexo direto no modo de como você vai olhar para a pessoa, como você vai se relacionar com ela e que expectativas você vai ter dela.
Neste contexto histórico de vários momentos de violação da pessoa com deficiência, as políticas de ações afirmativas chegam recentemente neste acesso à universidade por meio de políticas de cota. Mas para as pessoas com deficiência isso ainda ficou muito mascarado, tanto que na lei de cotas de 2012[1] não aparece claramente a questão da pessoa com deficiência.
Para corrigir, o governo lança, em dezembro de 2016, uma lei de cotas[2] na qual ele acresce a pessoa com deficiência. Amparada em outras legislações, se tentava buscar dentro das universidades essa garantia de cotas para as pessoas com deficiência, que não tem as mesmas igualdades de condição.
O básico de se lutar por esta questão das políticas de ações afirmativas no contexto universitário é que as condições das pessoas com deficiência são muito desiguais, tanto de ordem econômica, de condição de classe, como também de falta de condição de acessibilidade, que é muito injusta ainda. Então reservar é uma das medidas. Não é suficiente, porque dependendo de condições de deficiência, requer processos seletivos específicos. Isso é também uma política de acesso que precisa ser pensada. Não só a reserva de cotas, mas processos seletivos específicos para pessoas com deficiência.
Eu fiz prova do ENEM há cerca de um ano para eu me colocar no lugar de uma pessoa com deficiência, para saber: quanto tempo eu (sem deficiência, já terminando os estudos, doutora) levaria para fazer uma prova? E pensaria na condição de uma pessoa com deficiência visual, tendo um ledor pra ela. Uma vírgula que o ledor falar com uma entonação diferente destrói toda a compreensão do texto.
Vemos que, além do acesso à política de ação afirmativa e o estímulo para que ela cresça na universidade, devemos pensar também nesta permanência do aluno, garantindo o direto dele à educação, ou seja, garantir à formação acadêmica, a aprendizagem daquele conteúdo que é da formação dele como profissional. Essa política garante o acesso, mas precisa garantir a permanência e também a conclusão do curso com sucesso acadêmico. Ele tem que sair e dizer “- eu sou um profissional de Medicina”! ou: “- Eu sou um professor de Matemática”.
A ideia é que estas políticas venham dar estas condições já que eles vêm de um contexto de condições desiguais. Houve avanço neste sentido, apesar de muitas pessoas serem contra as políticas de cotas, as políticas de ações afirmativas, por julgarem ser protecionismo. Eu não concebo desta maneira. Não acho que é protecionismo, não acho que é conceder vantagens, mas sim dar condições, abrir oportunidades, garantindo condições diferentes para quem tem condições desiguais.
Uma coisa é um vidente fazer uma prova, outra coisa é um cego fazer uma prova. Uma coisa é um ouvinte fazer uma prova, outra coisa é um surdo fazer uma prova mediada por um intérprete. Ela vem garantir este conjunto de condições.
Coordcom – Como que surgiu o seu interesse na pesquisa com pessoas com deficiência?
Lucélia Rabelo – Eu tive uma formação privilegiada na Pedagogia. Por que privilegiada? De ser professora de magistério e estar cursando Pedagogia. Esse contato com a educação pública e ser professora, alfabetizadora e lidar com várias situações de sala de aula, com pessoas com deficiência, com alunos historicamente excluídos, reprovados. Lido com estes desafios da aprendizagem e do desenvolvimento.
Comecei uma caminhada trabalhando com este público, com uma identificação muito forte com a escola pública, com uma educação pública e esta trajetória de experiência de, ao mesmo tempo ser professora, ser formadora de professores, ainda na prefeitura quando era coordenadora pedagógica, me permitiu ter um contato e uma amplitude maior, depois chegando à universidade.
Quando eu saio da educação pública e chego à universidade os alunos com deficiência também começam a chegar. Na condição de coordenadora de Extensão, tive contato direto com os alunos de todos os cursos e os alunos com deficiência. Começamos a identificar demandas e pensar, por meio de tímidos projetos de extensão, um link direto com a área da deficiência da educação especial, no diálogo com a educação básica, de onde eu venho e me desloco. Todas minhas ações extensionistas e de pesquisa dialogam com a educação básica.
Faço pesquisa colaborativa. Pesquisa que identifica demandas. Com aqueles sujeitos, pensamos um processo de construção de programas de formação de intervenção atuando com os sujeitos na condição de coautores da escola base. Esse processo, essa vivência me levam a fazer o mestrado e doutorado em educação especial, saindo do Pará e indo ao sudeste, na cidade de São Carlos (SP), para poder completar minha formação e daí eu não saí mais (risos).
Coordcom – Em termos teóricos, o que é uma universidade ou uma escola inclusiva e acessível?
Lucélia Rabelo – Eu sempre problematizo o movimento da inclusão da educação inclusiva porque ele nasce dentro de um contexto de uma sociedade capitalista que é excludente. Ele nasce também como uma política neoliberal. As decisões de criar uma política de educação inclusiva vêm dentro deste viés e a gente precisa problematizar esta raiz para entender qual o sentido de “inclusivo”.
O sentido precípuo do inclusivo, desta educação inclusiva, é garantir o direito à Educação. Quando se afirma: “ - garantir o direito à Educação”, nem precisa do adjetivo “inclusivo”! É como se fosse um apêndice que se viu necessário para demarcar um movimento para gente garantir a efetividade de direitos que já se tinham previsto na legislação. No entanto, as pessoas com deficiências tornavam-se ainda mais invisíveis frente a essa materialidade no cotidiano das instituições de ensino.
Para ter uma escola ou uma instituição inclusiva e acessível é preciso que se garanta este direito à Educação. Para garantir este direito à Educação para um público que precisa de educação específica ou educação especial é preciso garantir as condições de acessibilidade que passa em todas as dimensões: desde acessibilidade urbanística que é uma responsabilidade do poder público, que permita com que a pessoa chegue até a universidade e que a porta da universidade esteja aberta em todos seus aspectos, até a acessibilidade arquitetônica. Ter a acessibilidade física que passa desde a organização de uma lixeira que você coloca no corredor ou de uma carteira que você deixa nos meio dos espaços ou, ainda, de algo que você joga no chão que a pessoa não está enxergando e a bengala não permite isso muitas vezes, dependendo do objeto, tudo isso vai funcionar como barreira física.
É preciso superar as barreiras físicas, superar barreiras arquitetônicas e na comunicação. Coisas simples. Se você tem um setor que divulga informações, essas informações precisam estar adequadas dentro da Lei da Acessibilidade[3], na internet, em todos estes formatos. É a universidade pensando esta inclusão. O e-mail que você envia que possui imagem? Como é que você pensa a acessibilidade com esta imagem? Tem áudio transmitindo a mensagem? Tem audiodescrição[4] com aquela imagem? Então todo este conjunto precisa ser garantido, porque é um direito de décadas atrás já garantido.
Nós olhamos para os sites das universidades e isso ainda está muito aquém. E você tem uma das principais acessibilidades que ela determina tudo, que é a acessibilidade atitudinal. A superação das barreiras que a gente tem com as atitudes. Esse é hoje um dos principais desafios dentro das universidades. A barreira atitudinal pode vir, por exemplo, de um preconceito que você tenha no sentido de não conhecer, não saber. Por exemplo, para você conduzir ou se oferecer para ajudar um cego, você não tem que pegar no braço dele, você tem que perguntar para ele como ele prefere ser conduzido e você fornecer a ajuda. São coisas simples. Às vezes eles ficam desconcertados. Você tenta fazer um favor e acaba fazendo do jeito errado. Este desconhecimento é uma barreira atitudinal. Por isso é importante termos campanhas educativas nas universidades, nas escolas, ter o protagonismo dos alunos com deficiência fazendo este diálogo, fazendo essa interação com a universidade como um todo. Porque a atitude abrange todo mundo.
Lá na UNIFESPA, a gente têm aliados que são os terceirizados que eles próprios observam se alguém deixou as cadeiras em local inapropriado, se um professor deixou uma bicicleta em uma coluna que prejudicar o acesso de um aluno que é cego. Qualquer tipo de barreira física, eles identificam e eles mesmos atuam como agentes deste processo.
Coordcom – De uma forma mais ampliada, temos um debate na dimensão da inclusão que diz respeito ao “Outro” estudado, por exemplo, na Antropologia, que vem com a noção de alteridade. De que forma podemos pensar este processo de implantação de metodologias de sensibilização da sociedade para que sejam mais eficientes no desafio de educar para a compreensão deste Outro?
Lucélia Rabelo – É verdade. Há muitas práticas, com vários povos, grupos sociais que historicamente foram marginalizados neste processo de discriminação, como os negros, indígenas, pessoas com deficiências e mulheres. Temos este cenário, que é um cenário que bate na questão da formação humana. Há princípios básicos dos direitos humanos completamente desconhecidos. Eu digo isso por uma vivência que eu tive com o curso de Especialização em Direitos Humanos.
Nós tínhamos grupos bastante diferentes, de origens religiosas diferentes, com preconceitos muito consolidados e essa experiência me mostrou que é possível trabalhar a questão dos direitos humanos com várias possibilidades, desde a escola e da educação infantil. Mas nós não temos isso no processo de formação humana, desde a educação infantil.
Eu tenho um filho que vai fazer quatro anos. Ele entende de muitas coisas sobre a condição da pessoa com deficiência. Se ele entra em um elevador, observa se tem Braille ou não. E ele fala: “- esse não tem Braille”. Como cego, ele se questiona. Em relação ao surdo, ele se comunica, tem amigos. Isso é uma coisa natural, de vivência da mãe, que ele foi fazendo parte desse grupo, não foi uma imposição. Com certeza, ele será um adulto bem diferente de qualquer outro que não teve esta oportunidade, de conviver com o diferente.
Sobre a questão indígena, que é muito séria, eu vejo hoje o indígena ingressando através das cotas. Eu dou aulas, tenho quatro alunos indígenas e me vi na situação de professora sem saber como trabalhar com o indígena. Eu olhava para ele e via que ele não acompanhava a aula. Então eu perguntei para ele: “- como seria a forma de você aprender este conceito?” E o aluno disse como tem que ser. Eu penso que, para qualquer questão dessa prática de discriminação, temos que pensar em um projeto nacional de uma formação de base em espaços escolares e não escolares.
Temos que pensar em um projeto de disseminação de uma cultura de direitos humanos. Começar a amenizar essa sociedade que temos muito prejudicada dessa questão de saber ou de querer se preocupar com o Outro e assim interagir de uma forma mais humana.
Coordcom – Como você analisa o avanço na questão da legislação que determina, por exemplo, a educação da História da África nas escolas? O que percebemos ainda é uma certa fragilidade do ponto de vista de preparo do professor para que haja avanços nos estudos culturais. O que nos parece é que há ainda uma reprodução de conteúdos ou apenas um interesse na cultura enquanto produto a ser consumido, mas não há um aprofundamento no que seria a essência do nosso pertencimento enquanto País que tem a presença forte do negro. Como você analisa o impacto desta legislação? Foi um avanço?
Lucélia Rabelo – A legislação com certeza é um avanço no sentido de abrir possibilidade de se trabalhar algo com que volta para os direitos humanos que é “conhecer”. Muitos dos preconceitos acontecem por desconhecimento ou por um conhecimento equivocado. Muitas das discriminações em relação à cultura afrodescendente, africana, enfim, sobre nossas raízes, vêm de informações deturpadas desta cultura. Por isso, nada melhor do que ter isso em forma de lei, de programas específicos, mesmo com resistências. Há muitas resistências. Elas se devem a questão de cunho muitas vezes religioso, de modos de ver a cultura, as religiões de raízes africanas de um modo pejorativo, prejudicado de compreensão e mais uma vez a gente volta para a questão. Eu trabalhei justamente diversidade religiosa, neste curso de direitos humanos e lá tínhamos uma diversidade de pessoas diferentes. A sensação que a gente tinha é que eles se atacavam.
Era católico que atacava umbandista, pessoas ligadas ao candomblé que atacam evangélico. E eu dizia assim: é exatamente esse cenário que mostra uma representação da sociedade. “Vocês estão aqui fazendo um curso de direito humanos, mas olha como vocês estão se comportando! Vocês não se colocam no lugar do Outro!” Lidar com cultura, com religião que diverge da minha e às vezes é até antagônica, requer uma postura etnográfica.
Por isso, ao invés de fazer piada com a religião do outro, o que é que eu tenho que entender? Quais os significados? Ou perceber quando alguma postura da religião é discriminatória. Como muitos evangélicos, por exemplo, acabam cometendo e outras religiões em relação a outras e a modos, assim como católicos. A briga era mais ou menos neste sentido. E o que a gente percebia é, exatamente, aquilo que você começou a falar: do Outro. De como é que eu enxergo. Como o Outro representa aquele valor que ele tem? Se ele tem um valor de adorar uma imagem, qual é o significado que tem para isso?
Eu sou de origem evangélica. Isso me remonta uma sala de alfabetização em que lá é muito forte a questão da Nossa Senhora de Nazaré. A aula era sobre um tema, mas os alunos queriam falar do Círio que ia acontecer naquela semana. Não tinha como dar aula. Eu tinha que parar para ouvi-los, para saber qual era o significado. A aula tomou outra proporção. Que julgamentos teriam de mim ou dos professores? Alguns diziam: “- como que pode? Você é evangélica e deixa os alunos falarem da santa”. Isso é para ilustrar que é possível a transformação, é necessário mais instruções na escola. Mas isso requer uma formação humana do professor que infelizmente a universidade ainda não está conseguindo. Então temos que analisar onde que está o problema disso.
Coordcom – Em linhas gerais, quais são as grandes contribuições em relação a este trabalho de sensibilização, de projeção dos direitos e da importância das temáticas no âmbito da sociedade e da política realizado por meio do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão Acadêmica da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará?
Lucélia Rabelo – O Núcleo de Acessibilidade demarca não só um espaço físico, mas causa um impacto até de quem nunca ouviu falar na área. Em algum momento, em alguma situação, as pessoas vão se deparar com esta sensibilização. Nós criamos continuamente espaços para se falar sobre a pessoa com deficiência, sobre o Núcleo, do papel de cada um, do professor. Mas sempre vão poucos servidores, isso de um modo geral.
Quando a gente promove curso de libras, de princípios inclusivos ou de audiodescrição, a minoria do público é professor. Se temos 30 vagas, 15 são técnicos, dois são professores. Temos um desafio muito grande neste acesso, nesta aproximação com o professor. Quanto aos alunos, neste processo de sensibilização, o Núcleo faz campanhas e tenta achar ferramentas. Se os eventos não trazem todo mundo, vamos às salas de aula para fazer campanhas educativas.
Organizamos um texto de fala e vamos com a equipe de bolsistas de diversos cursos que entram até nas suas turmas para falar sobre o importância do Núcleo sobre o que é o papel do Núcleo, como cada um tem responsabilidade em atitudes inclusivas acessíveis como, por exemplo: a carteira que você deixa no meio do corredor ou do carro que estaciona na vaga destinada às pessoas com deficiência.
O Núcleo é um divisor de águas para a afirmação de uma política de inclusão e acessibilidade para um público que requer um atendimento específico que difere do indígena, do negro. Isso precisa ficar muito claramente demarcado, porque ao mesmo tempo em que no discurso das diversidades se tem aquela ideia de que todo mundo é diferente, isso é muito perigoso porque acaba anulando aquilo que é uma necessidade específica daquele grupo.
As pessoas com deficiência têm uma necessidade específica, que a educação especial deve responder e o Núcleo está para oferecer esta educação específica. Ou seja, as condições de acessibilidade para formação acadêmica, de ser includente para garantir esta acessibilidade pedagógica que é uma das acessibilidades que a universidade tem que responder também que se traduz na prática do professor.
Por exemplo, como é que eu, professor de História vou trabalhar um filme legendado, se tenho um aluno cego dentro da sala de aula? Em uma campanha educativa aconteceu isso. O professor foi dar uma aula à noite e passar um filme, mas havia um aluno cego e ainda pela manhã em visita dissemos: “ – olha, quando forem fazer um seminário, mostrar documentário ou vídeo, vocês alunos precisam considerar a pessoa com deficiência que tem em sala. E eles perguntam: “ - e como a gente faz?” Tem que procurar o Núcleo. Podem fazer a apresentação com audiodescrição, enviando antes o vídeo. O aluno vai pra lá e ele já sai com as informações necessárias do vídeo. O professor falou: “- olha foi tão importante vocês falarem isso aqui agora porque eu ia passar um filme legendado à noite e tem um aluno cego na sala.
Às vezes uma informação simples que os professores não têm ou também não dispõe de tempo para participar dos eventos que promovemos, das palestras, etc, requer que a gente vá onde eles estão. Temos tentado sensibilizar a universidade neste sentido. Hoje, vemos o impacto desta tentativa de aproximação e orientação, porque os institutos têm chamado e às vezes não temos dado conta de atender todo mundo.
Fazemos uma fala de orientação mais geral e que a gente imagina que esta é uma das ações importantes do Núcleo que tem uma responsabilidade social também com a comunidade externa. Fazemos estas ações muito fortemente na tradição extensionista de pesquisa, porque fazemos extensão e pesquisa colaborativa. Contribuímos também com as políticas públicas externamente e apesar de acharmos que é um campo tão estéril, não é. Na verdade, se você trabalha desde a educação infantil, dando suporte para os alunos com deficiência seguirem na escolaridade, eles vão chegar ao ensino superior muito bem. É importante este processo também.
Coordcom: O que a professora tem a dizer em relação às políticas públicas no Brasil para esta área?
Lucélia Rabelo – Existe muita legislação. Há um legado de legislação e de programas de cunho assistencial e educacional. A legislação é muito bonita é uma das melhores do mundo. O Brasil é signatário de todo documento que surge. Mas não podemos comparar a assinatura de documentos pelo Brasil com outros países, por exemplo, como a Espanha, por conta da dimensão continental e diversa que tem o Brasil. Ele assina o compromisso de que vai se responsabilizar, de materializar aquilo, mas não dá conta de materializar.
Um dos principais problemas é que a gente tem muitas políticas bem formuladas, algumas equivocadas, mas as pesquisas das universidades tem que revelar que estão equivocadas, se não o MEC vai achar que está fazendo tudo legal. É importante a pesquisa da universidade para revelar onde o MEC está errando nestas políticas. Mas o principal desafio é essa materialidade da política, é essa operacionalização: fazer com que o que está regulamentado, se efetive na prática.
Temos a contradição do que é pensado legalmente, do que é pensado na política, daquilo que você destina para acontecer, a efetivação daquela política que é sempre inferior daquilo que se tem como demanda. Esta contradição é própria da sociedade capitalista. Acaba que o interesse ideológico de uma sociedade capitalista não é ter a inclusão, mas é ter uma “semi-inclusão”.
Temos brigado com esta contradição que é própria do sistema capitalista e dissemos: “Não! Não queremos esta semi-inclusão! Queremos a inclusão! Queremos a inclusão que nos permita um transformação dessa estrutura da sociedade que produz esta semi-inclusão”.
Temos trabalhado sempre nesta perspectiva, de projetar uma transformação na estrutura que mantem um modelo de inclusão que não nos satisfaz e não garante esta totalidade. É muito sofrido lidar com o público com deficiência e com estas contradições. Eu acompanho famílias de pessoas com autismo e através de um projeto de extensão vemos que temos, por exemplo, um aluno agressivo que morde a mãe. Ele tira um pedaço da mãe porque o município não concedeu o remédio que ele precisa tomar. É a ausência do funcionamento da política pública.
Não adianta termos o direito do aluno em ir para escola, se ele não toma a medicação que permite com que ele acompanhe o percurso escolar, sem ter atitudes como essa. É só para ilustrar o cenário da política. Temos uma previsão textual, mas na materialidade nós enfrentamos cotidianamente muitos desafios.
Coordcom – Qual o lugar da família neste processo educacional, considerando estes desafios apresentados?
Lucélia Rabelo – Penso que a família, de uma forma geral, é um dos caminhos, um dos espaços e pode ser seduzida por este processo para militar em conjunto com os espaços nas escolas. Quando a gente fala que a comunidade escolar precisa ser sensibilizada na questão da inclusão, a escola não assume este sujeito historicamente marginalizado, de forma ampla, seja o negro, o indígena ou a pessoa com deficiência.
Por isso penso que precisamos começar um processo de construir culturas inclusivas nestes diversos espaços sociais e não só na escola, mas igrejas também. Precisamos fazer um movimento de construção de uma cultura inclusiva, amparada por uma concepção de direito humano.
Pensar os diversos espaços sociais e de como chegar até eles. Isso tem sido provocado pelo Núcleo de Acessibilidade. Eu trabalho com bolsistas. Eles têm uma disciplina muito forte. Eles têm responsabilidades de estudar sobre direito humano, sobre pessoa com deficiência. Eles dão palestras.
O espaço funciona como estágio de qualquer curso que programe uma visita técnica e são os bolsistas que dão palestras sobre os temas. Este processo tem sido bem legal. A equipe do Núcleo tem sido convidada, por exemplo, a ir em igrejas para começar este processo de sensibilização. Eles observam uma rampa que a igreja constrói de qualquer jeito; observam se a igreja tem idosos com mobilidade reduzida ou que se tornaram pessoas com deficiência. Tem sido legal esta chamada da representação da sociedade para o Núcleo, que atende dentro das possibilidades.
Estamos nestes espaços porque acreditamos que não é um sonho solitário ou uma utopia solitária. A inclusão está na ordem do dia e não adianta ser pela força da lei, porque assim não vai ocorrer. Temos sensibilizar, se não a mudança não acontece.
[1] Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012.
[2] Lei nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016.
[3] Lei No 10.098, de 19 de dezembro de 2000.
[4] Faixa narrativa adicional que permite o acesso dos deficientes visuais aos meios de comunicação visual, dentre eles, televisão e o cinema.
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